terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Inventário lírico da cidade de S.Paulo da Assunção de Luanda


Primeiro tem o clima:
Sol e calor

Calor humano, de dentro para fora
- Que nada tem a ver

com o calor de fora para dentro
- Que faz sofrer

Também tem chuva às vezes
mas isso é S.Pedro chorando
por via dos nossos pecados,
N´Gana-Zambi abrindo ao céu
as comportas da tristeza,
para limpar a cidade!

Cidade de muitos Santos
-Tem S.Paulo com a Espada
e a Senhora da Assunção

- Rogai por nós, vestida de azul
que nós todos precisamos
pelo muito que pecamos!

Também tem São Miguel:
Mas São Miguel é Arcanjo
Tem espada de muitos gumes,
é Mukuambamba, fiscal de feitiço!
(corpo dele não entra faca
nem entra reza nem nada)

Tem Santos protectores
que estão cá desde o começo
desde que Zambi do céu
fez este mundo sem jeito
tão longe de ser perfeito,
tão longe de ser perfeito!

Tem Gonga , Gonga velha
A que entrega a felicidade
a quem vai ao seu Dilombe
e que protege a Cidade.

Tem Vunge que é da justiça,
conta branca rubra e preta.
Mas está velha coitadinha
ninguém sabe onde ela mora
ninguém sabe onde ela pára.

Tem Cuco-Muquita lá da Quissama,
que veio do Rio Salgado

Rio de lágrimas choradas
nas romagens à Muxima.

Devoção de povo antigo,
na igreja branca e velha,
onde a Senhora está esperando,
fora do tempo , fora do tempo,
quem queira fazer promessa

Tem Lemba que é do amor-amor
- É ela que ensina às mulatas
esse andar de perdição
esse olhar de brasa viva
e esse jeito de encantar
que nos leva o coração

Para quebrar esse feitiço
só indo ver a Sant´Ana
que está morando em Caxito.
Só Ela com seu poder
pode atalhar esse enguiço!

Tem outros Santos menores
dos tais que poucos conhecem
sabidos dos pais de Umbanda
e Manha-ia-Umbanda antigas
Mães de todos os feitiços
desta terra velha e grande.

Depois tem os Calundús.
Tem Petelo, Pedro Màzarti
Fidalgo do Manicongo

Que virou um dia Calundú
para atormentar os viventes

E tem Quianda na areia da praia
Tem também o anel de ouro da Ilha
à volta dela
como uma aliança de noivado
de Luanda com o mar.

E depois tem igrejas, igrejas velhas
como aquela que está
no largo do Palácio
e que era tão bonita
no tempo em que era ruína,
tinha arcos e morcegos,
e morava lá uma tal Senhora Saudade

- Tem a Senhora do Cabo
cheia de calor e sol
com seus coqueiros compridos
abanando de mansinho

Tem a Igreja do Carmo
que repica batizados
tendo nos sinos roufenhos
consonância de Marimba:

Teleco-Tim, Teleco-Tim
Teleco-Tem, Tem!

Tem a Senhora da Nazaré
que nos valeu na Batalha de Ambuíla
com azulejos do D.Fuas Roupinho
e mais as batalhas do Manicongo
tem no altar Preto Santinho

e a cabeça do Rei do Congo
está sepultada na parede

Também tem igrejas novas
que ainda não estão dentro,
dentro do mundo do povo
pouca gente lá chorou

acesas de vidro noite fora
num esplendor de luzes coloridas
a gente fica olhando aquele… que lindo
pensando se é igreja de verdade.


Tem também padrões e estátuas,
mas a melhor é o Pedro Alexandrino
que ninguém sabe quem era
e mora nas Portas do Mar
tem também as Escadas da Poesia
que não levam a nenhures
aninhadas de encontro ao morro de S.Miguel.

E tem a noite e o luar
E tem a noite e o luar,

E a desvergonha dos antros de perdição
alguns com nomes poéticos
abertos até às portas do sol,
cheios de cafusos borrachos
cansados das vidas do mato,
a descansar da solidão
e que amanhã vão trabalhar
e que amanhã vão trabalhar

E tem a árvore da Portugália cuja sombra
hoje é sombra do passado.

Tem Baleizão de carrinho
cada um dois e quinhentos
poesia doce e colorida
nas mãos de todas as cores
da criançada de sempre.
Também tem jardins…poucos e a medo.

Mas de todos o melhor
ainda é o da cidade alta
onde nunca vai ninguém

Tão tristinho, tão cheio de ontem

com um coreto verde,de ferro
onde paira a valsa do século dezanove
que nunca mais se tornou a tocar

Dá vontade de chorar lembranças daquela moça
que hoje é só fotografia
vestida de lilás claro
da flor dentro do livrinho
lenço amarelo da idade
com a renda a desfazer-se
numa caixa de xarão.

Mas tem o atrevido jeito
das acácias rubras floridas
que num grito de bandeira
verde rubra de alegria,
enfeitam de fantasia
os Dezembros de Luanda!

Tem o Cemitério Velho, esmaltado de viúvas

Embiocadas de negro
luto por dentro e por fora.

Saudades dos mortos, e dos Poetas,
saudades dos amigos e Lugares
que não existem mais.

Ingombota, rua do Franco
o Caribala, o Carnaval que passou
as pitangas que já não há
a quifufutila que eu soprava
às vezes de brincadeira
para os óculos da avó Augusta!

Mas ainda tem bairros antigos
tem o Balão, o Bungo e a Maianga
e tem Muceque também,
mas como o antigo já não tem.

Agora é tudo tijolo, zinco madeira
e a gente não toca o quissange
à porta das cubatas de capim

As lojas do Muceque é que ainda há

vendem quinhentas de vinho tinto
trinta vezes batizado
a um escudo cada uma.

E as festas do Muceque também
rebitas, massembas, batucadas
a Cidrália e o mar profundo além.

Tem a cidade nova cheia de gente
casas, casas tristes, casas alegres
caras brancas, pretas, indiferentes
carros, camiões, motorizadas
rádios berrando anúncios, anúncios,
anúncios luminosos, coca-cola
mas isso são outras conversas.

O que eu quero enfim dizer,
é que quisera fazer para vós
um festim

Para vós que lestes o inventário
que fosse cozinhado em fogo
rasgado com pemba e ucusso

Muambá, quitabas, mufetes
cozinhados pungentes
com gosto de gengibre
de jindungo e de saudade!

Festim de recordações
e de esperanças.

Para que comigo aprendam a poesia
desta cidade de muitos santos
e de muitas cores.
Cidade onde se queima
alecrim e erva do mato
se reza nas igrejas
e se amam Uangas nos terreiros.

Cidade de transmontanos
minhotos, bailundos, algarvios
quimbundos, indianos e ganguelas
gentes de todos os lados
até alguns estrangeiros..

Cidade de guardar memória
na memória de quem parte.

Cidade que eu gosto
porque é minha.

Carne e sangue e terra
da minha saudade quando parto
e cruz dos meus dias quando chego!


Albano Neves e Sousa
Luanda
1966/1968

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