quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Saudades



“Há dias que sinto saudades tuas,
ou será apenas o desejo de falar contigo?...
Hoje tenho saudades do “abraço” que não dei…


Nostalgia


Mais uma tarde se esmai

Na doçura dos poentes

Deslizam lágrimas quentes

Por um sonho que se esvai.



No dia ameno que cai

Tristes anseios prementes

Vêem de algures sorridentes

Misturar-se com meu ai.


Saudade, doce saudade

envolve todo o meu ser.

-No quarto escuro,sombrio


Consome-me a mocidade

a distância do meu querer

que não enche este vazio.


M.A.S.
(Lisboa, 1968)

quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Pensamento


"Uma pessoa para compreender tem de se transformar."

( Antoine De Saint Exupery )

Diário

…Quando as aves cessarem os seus cantos,
e todas as primaveras calarem os encantos
dos teus vinte anos…
…Quando as folhas das árvores tombarem todas,
e só os seus vultos esguios e distantes,
se desenharem
no fundo azul-triste do céu…
…Quando tudo passar,
tudo!...até eu…
nada mais ficará contigo
senão tu mesmo!...
senão a presença real das Horas Belas,
(terrivelmente belas por vezes…)
que viveste,
comigo,
ou sem mim,
mas que VIVESTE mesmo assim…


Só elas ficarão…as Horas Belas…
serenas e eternas…
estrelas
que iluminam o céu de um dia,
e ficaram sempre “estrelas”…
de pureza nunca maculada…
de luz jamais perdida…
alimentada
pelo fogo, daqueles que verdadeiramente
te amaram na Vida!

Alda Lara
(Agosto-1949)

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Romance


Menina dos olhos belos
dos verdes olhos tão belos,
menina dos olhos tristes...
Sentada nessa varanda
onde não passa ninguém
porque esperas soluçando
todo o dia quem não vem?...

Menina dos belos olhos.
Mãos cruzadas.Olhar vago.
Nem o mais ligeiro afago
o vento aqui te deixou...

Posta então nessa varanda,
porque esperas noite e dia,
tão serena e tão sombria
quem por aqui já passou?...

Se tu soubesses menina!...
Enquanto bordas sonhando
em tua toalha fina,
bem perto desta varanda,
quantas varandas quebraram!
quantas meninas deixaram
suas tão belas varandas,
e nunca mais se tornaram...
Quantas! Quantas!

E tu, sentada bordando,...
E tu, sozinha esperando,
alta noite, longo dia,
por quem te esqueceu, passando...
E tu, sentada sonhando...
Hão-de apagar-se as estrelas
Há-de enrugar-se o arvoredo
E tu, sentada sonhando
em silêncio o teu segredo...

Menina!Parte!Olha o tempo!
Pega na tua, esta mão...
Irás pela madrugada
em teu cavalo alazão!
Irás de cabelo solto
e larga saia rodada,
irás de coração livre,
entoando uma canção!...

Irás!E contigo, certo,
só tue destino liberto
Só tu, sozinha, à procura
doutra estrela, noutro céu,
em busca de quanta vida
esta morte em ti nasceu!...


Alda Lara
(1949-1950)

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Franjipani


"Não seja empurrado por seus problemas.
Seja conduzido por seus sonhos."


domingo, 27 de janeiro de 2008

Luanda


Luanda
Debruçada sobre o mar
onde as ondas uma a uma
vêem desfazer-se em
espuma
a tua ilha beijar

Luanda
da fortaleza em pendor
na expressão de uma
aguarela
que o artista com fervor
pintou magestosa e bela

Luanda
do batuque pela noitinha
e as acácias em flôr
és tu Luanda rainha
senhora do meu amor.

Armando Miranda

Encontros


Tive amigos que morriam, amigos que partiam
Outros quebravam o seu rosto contra o tempo.
Odiei o que era fácil.
Procurei-te na luz, no mar, no vento.


Sophia de Mello Breyner Anderson

Encontros e desencontros
Para um grande amigo que eu reencontrei “depois de 100.000 anos”...

sábado, 26 de janeiro de 2008

Morena de Angola



Morena de Angola que leva o chocalho amarrado
na canela
Será que ela mexe o chocalho ou o chocalho é que mexe
com ela?


Será que a morena cochila escutando o cochicho
do chocalho?
Será que desperta gingando e já sai chacoalhando
pro trabalho?
Morena de Angola que leva o chocalho amarrado
na canela
Será que ela mexe o chocalho ou o chocalho é que
mexe com ela?


Será que ela tá na cozinha guisando a galinha
cabidela?
Será que esqueceu da galinha e ficou batucando
na panela?
Será que no meio da mata, na moita a morena
ainda chocoalha?
Será que ela não fica afoita pra dançar na chama
da batalha?


Morena de Angola que leva o chocalho amarrado
na canela
Passando pelo regimento ela faz requebrar
a sentinela
Morena de Angola que leva o chocalho amarrado
na canela
Será que ela mexe o chocalho ou o chocalho é que mexe
com ela?


Será que quando vai pra cama a morena se esquece
do chocalho?
Será que namora fazendo cochicho com seus
penduricalhos?
Morena de Angola que leva o chocalho amarrado
na canela
Será que ela mexe o chocalho ou o chocalho é que mexe
com ela?


Será que ela tá caprichando no peixe que eu trouxe
de Benguela?
Será que tá no remelexo e abandonou meu peixe
na tigela?
Será que quando fica choca põe de quarentena
seu chocalho?
Será que depois ela bota a canela no nicho
do pirralho?


Morena de Angola que leva o chocalho amarrado
na canela
Eu acho que deixei um cacho do meu coração
na Catumbela
Morena de Angola que leva o chocalho amarrado
na canela
Morena, bichinha, danada, minha camarada,
vem me velar.


Chico Buarque

Pensamento


“Todos nós temos as nossas máquinas de tempo.

Algumas nos levam de volta, elas são chamadas

recordações.

Algumas nos levam adiante, elas são chamadas

sonhos.”


(Jeremy Irons)

sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Sonhos impossíveis


Quando branca e leve
branca e esguia
a chuva caía
batendo os telhados vermelhos
Num eterno tamborilar.

Tinha sonhado
sonhos impossíveis de sonhar.

Tinha sonhado
estar a sós contigo
na madrugada fria.

Branca e leve
branca e esguia
a chuva caía
na capa de neve
da minha existência vazia.

Mais tarde ao despertar
revivi,com saudade,na manhã sombria
Sonhos impossíveis de sonhar.

M.A.S.
Coimbra, 1968

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

Pensamento


Um amigo autêntico é
o que sabe tudo sobre ti,
e continua a ser teu amigo

Kurt D. Cobaim

Regresso

"Foto do Sanzalangola"


Quando eu voltar,
que se alongue, sobre o mar,
o meu canto ao Creador!

Porque me deu, vida e amor,
para voltar...
Voltar...
Ver de novo baloiçar
a fronde magestosa das palmeiras
que as derradeiras horas do dia,
circundam de magia...
Regressar...
Poder de novo respirar,
(oh!... minha terra!...)
aquele odor escaldante
que o húmus vivificante
do teu solo encerra!
Embriagar
uma vez mais o olhar,
numa alegria selvagem,
com o tom da tua passagem,
que o sol,
a derdejar calor,
transforma num inferno de côr...

....................................

Sim! Eu hei-de voltar,
tenho de voltar,
não há nada que mo impeça.
Com que prazer
hei-de esquecer
toda esta luta insana...
que em frente está a terra angolana,
a prometer o mundo a quem regressa...

Ah! quando eu voltar...
Hão-de as acácias rubras,
a sangrar
numa verbena sem fim,
florir só para mim!...
E o sol esplendoroso e quente,
o sol ardente,
há-de gritar na apoteose do poente,
o meu prazer sem lei...
A minha alegria enorme de poder
enfim dizer:

Voltei!...

Alda Lara, 1948

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Pensamento


“Antes de magoar um coração,
Veja se não está dentro dele.
Pois se um dia chorei
Não foi porque perdi
E sim porque amei”.

Promessa



De noite ao luar dos sonhos,
quis reter a tua imagem
fugiu-me em doce miragem
para mundos enfadonhos.

Depois, quando fresca aragem
me deu teu olhar risonho
voltou meu mundo de sonhos
povoando-me a imagem.

Fechei meus olhos, dormi;
Abri meus lábios, sorri;
Atrás, saudades ficaram.

Sonhar?-Nada há que me impeça.
Sonhar?- com uma promessa,
de só poder ver-te a ti.

M.A.S.
Porto, 1968

Cajueiro plantado no cérebro


- Oh, velho, disforme, cambuta, retorcido, feio-
-maravilhoso cajueiro da minha infância!
Vem de longe estender tua sombra amiga
Sobre meu corpo longo de suor e desespero...


Traz-me a carícia de tuas folhas-
-paraus de piratas nas lagoas da chuva
(Estou longe, quero regressar à minha terra...)
O suave aroma de teus ramos de pele encarquilhada, resinando,
Os esconderijos de teus braços nos cigarros proibidos.

Vem de longe, desse fundo sem eco da distância,
E traz-me a doce fragrância de um só caju maduro
Marcado com meu nome e data
E que os outros não descobriram...

Oferece-me a última vez que seja na vida
Teus ramos tenros para marinhar
Acrobacias impossíveis:
- Énu mal'ê! Énu mal'ê

António Cardoso

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Lágrima de preta



Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.

Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.

Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.

Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.

Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:

nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.

António Gedeão
(1906-1997)

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Os frutos da nossa infância



Não deixem que a gajaja
e o maboque
sejam simplesmente na memória do futuro
singelas recordações
do nosso antigamente.


Não permitem que a saborosissima noxa
deixe unicamente na boca da nossa infância
o gosto e o perfume do guloso apetite.


Que o paladar agridoce do tambarino
não de esfume no tempo de só lembrança
e a pitanga
não nos recorde apenas além do sumo
o rubro dos lábios sequiosos
do beijo apaixonado.


Não façam que o mirangolo,
a manga, o sape-sape
se consumam como fogo ardente
dos desejos,
deixando-nos a nostalgia
dum sabor embriagante.


E a goiaba, a múkua,
o trabalho ou o coroado ananás
continuem para sempre a reinar pelo tempo
de todas as infâncias
como frutos abertos ao paladar
dos nossos desejos a todo o momento.


Que toda esta riqueza suculenta
da nossa amada terra
a nossa mãe Angola
continue,
através de todos os cacimbos.
no incontravel tempo,
enchendo nossas kindas
desse gostoso e incomparável
maná


(Eduardo Brazão- Filho)

-Aqueles que passam por nós, não vão sós, não nos deixam sós.

Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós.


Antoine de Saint-Exupery"

domingo, 20 de janeiro de 2008

Era no tempo dos tamarindos


Era no tempo dos tamarindos
Meu pai sempre me acordava pela manhã
E ia cantando para o quintal
Enquanto fazia a barba
Debaixo do caramanchão
Da buganvília cor-de-violeta.

Era no tempo dos tamarindos
Zenza Niala vinha entrando na cancela
À cabeça a quinda carregadinha de fruta
Sempre cumprimentava minha mãe:
-“Sápêrê, Dona!”
Minha mãe respondia:
-“Olá”

Ela agachava no chão
Destapava a quinda
E por sob as folhas frescas de mamoeiro
Mostrava papaias e pitangas saborosas
Às vezes trazia fruta-pinha e sápe-sápe
Era sempre o mesmo diálogo
Minha mãe:”Chingamin?”
Zenza Niala no chão sorria
Mostrava os dentes de marfim
E respondia

-“Meia-cinco, sinhóra”

Era no tempo dos tamarindos.

E havia “bigodes” e “bicos-de-lacre”
Cantando nas acácias do quintal.

Depois Zenza Niala ia embora,
As ancas baloiçando
A quinda na cabeça

Era no tempo dos tamarindos


Ernesto Lara Filho

Poeta nascido em 1922 em Benguela.
Faleceu em 1977.
Era irmão da poetisa Alda Lara

sábado, 19 de janeiro de 2008

Testamento


À prostituta mais nova,
do bairro mais velho e escuro,
deixo os meus brincos,lavrados
em cristal, límpido e puro...

E àquela virgem esquecida
rapariga sem ternura,
sonhando algures uma lenda,
deixo o meu vestido branco,
o meu vestido de noiva,
todo tecido de renda...

Este meu rosário antigo,
ofereço-o àquele amigo
que não acredita em Deus...

E os livros,rosários meus
das contas de outro sofrer,
são para os homens humildes,
que nunca souberam ler...

Quanto aos meus poemas loucos,
esses, que são de dor
sincera e desordenada...
esses, que são de esperança,
desesperada mas firme...
deixo-os a ti meu Amor...

Para que, na paz da hora,
em que a minha alma venha
beijar de longe os teus olhos,

vás por essa noite fora...
com passos feitos de lua,
oferecê-los às crianças
que encontrares em cada rua...


Alda Lara, Lisboa, 1950

do Livro primeiro de "Poemas"

Sonho


sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Fruta


Quitanda de fruta verde,
dá-me um gomo de laranja
para matar a sede.
Ou, então, será melhor
dar-me um veneno qualquer
porque eu ando perturbado
e o meu sonho anda queimado
por uns olhos de mulher!

- Minha senhora, laranja,
limão, fresquinho, caju,
ananás ou abacate!...

E a quintandeira passou,
saudável, viva, graciosa,
com uma flor desfolhada
no seu sorriso escarlate.

E no ar um som de musica ficou
e um perfume de fruta
que não matou minha sede

Ó agri-doce quitanda
da fruta verde!...

Tomás Vieira da Cruz

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Árvore de Frutos


Cheiras ao caju da minha infância

e tens a cor do barro vermelho molhado

de antigamente;

há sabor a manga a escorrer-te na boca

e dureza de maboque a saltar-te nos seios.


Misturo-te com a terra vermelha

e com as noites

de histórias antigas

ouvidas há muito.


No teu corpo

sons antigos dos batuques à minha porta,

com que me provocas,

enchem-me o cérebro de fogo incontido.


Amor, és o sonho feito carne

do meu bairro antigo do musseque!

António Cardoso

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

"Simplesmente delicioso"



Quando te disse
que era da terra selvagem
do vento azul
e das praias morenas
do arco-íris das mil cores...
do sol com fruta madura
e das madrugadas serenas....

das cubatas e musseques
das palmeiras com dendém
das picadas com poeira
da mandioca e fuba também...

das mangas e fruta pinha
do vermelho do café
dos maboques e tamarindos
dos cocos, do ai u'é...

das praças no chão estendidas
com missangas de mil cores
os panos do Congo e os kimonos
os aromas, os odores...

dos chinelos no chão quente
do andar descontraído
da cerveja ao fim de tarde
com o sol adormecido...

dos merenges e do batuque
dos muquixes e dos mupungos
dos imbondeiros e das gajajas
da macanha e dos maiungos.

da cana doce e do mamão
da papaia e do cajú....

tu sorriste e sussurraste
"Sou da mesma terra que tu!"

Ana Paula Lavado
in " Um beijo sem nome" do livro "Vozes ao Vento"


NB:Ana Paula Lavado nasceu em Angola, em
Cambambe, a 19 de Julho de 1960.

terça-feira, 15 de janeiro de 2008

Amor com carácter de urgência


A INVENÇÃO DO AMOR


Em todas as esquinas da cidad
nas paredes dos bares à porta dos edifícios públicos nas janelas dos autocarros
mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios de aparelhos de rádio e detergentes
na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém
no átrio da estação de caminhos de ferro que foi o lar da nossa
esperança de fuga
um cartaz denuncia o nosso amor
Em letras enormes do tamanho
do medo da solidão da angústia
um cartaz denuncia que um homem e uma mulher
se encontraram num bar de hotel
numa tarde de chuva
entre zunidos de conversa
e inventaram o amor com carácter de urgência
deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia quotidiana

Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração
e fome de ternura
e souberam entender-se sem palavras inúteis
Apenas o silêncio
A descoberta
A estranhezade um sorriso natural e inesperado

Não saíram de mãos dadas para a humidade diurna
Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente
Embora subterraneamente unidos pela invenção conjunta
de um amor subitamente imperativo

Um homem uma mulher um cartaz de denúncia
colado em todas as esquinas da cidade
A rádio já falou
A TV anuncia iminente a captura
A policia de costumes avisada
procura os dois amantes nos becos e avenidas
Onde houver uma flor rubra e essencialé possível que se escondam tremendo a cada batida na porta
fechada para o mundo
É preciso encontrá-los antes que seja tarde
Antes que o exemplo frutifique
Antes que a invenção do amor se processe em cadeia

Há pesadas sanções paras os que auxiliarem os fugitivos

Chamem as tropas aquarteladas na província
convoquem os reservistas os bombeiros os elementos da defesa passiva
Todos

Decrete-se a lei marcial com todas as suas consequências
O perigo justifica-o
Um homem e uma mulher
conheceram-se amaram-se perderam-se no labirinto da cidade
É indispensável encontrá-los, dominá-los, convencê-los
antes que seja demasiado tarde
e a memória da infância nos jardins escondidos
acorde a tolerância no coração das pessoas

Fechem as escolas
Sobretudo protejam as crianças da contaminação
Uma agência comunica que algures ao sul do rio
um menino pediu uma rosa vermelha
e chorou nervosamente porque lha recusaram


Segundo o director da sua escola é um pequeno triste
Inexplicavelmente dado aos longos silêncios e aos choros sem razão
Aplicado no entanto
Respeitador da disciplina
Um caso típico de inadaptação congénita disseram os psicólogos
Ainda bem que se revelou a tempo
Vai ser internado
e submetido a um tratamento especial de recuperação
Mas é possível que haja outros.
É absolutamente vital
que o diagnóstico se faça no período primário da doença
E também que se evite o contágio com o homem e a mulher
de que se fala no cartaz colado em todas as esquinas da cidade

Está em jogo o destino da civilização que construímos
o destino das máquinas das bombas de hidrogénio
das normas de discriminação racial
o futuro da estrutura industrial de que nos orgulhamos
a verdade incontroversa das declarações políticas

Procurem os guardas dos antigos universos concentracionários
precisamos da sua experiência onde quer que se escondam
ao temor do castigo

Que todos estejam a postos
Vigilância é a palavra de ordem
Atenção ao homem e à mulher de que se fala nos cartazes
À mais ligeira dúvida não hesitem denunciem
Telefonem à polícia ao comissariado ao Governo Civil
não precisam de dar o nome e a morada
e garante-se que nenhuma perseguição será movida

nos casos em que a denúncia venha a verificar-se falsa

Organizem em cada bairro em cada rua em cada prédio
comissões de vigilância.
Está em jogo a cidade
o país a civilização do ocidente
esse homem e essa mulher têm de ser presos
mesmo que para isso tenhamos de recorrer às medidas mais drásticas

Por decisão governamental estão suspensas as liberdades individuais
a inviolabilidade do domicílio o "hábeas corpus" o sigilo da correspondência
Em qualquer parte da cidade um homem e uma mulher amam-se ilegalmente
espreitam a rua pelo intervalo das persianas
beijam-se soluçam baixo e enfrentam a hostilidade nocturna
É preciso encontrá-los
É indispensável descobri-los
Escutem cuidadosamente a todas as portas antes de bater
É possível que cantem
Mas defendam-se de entender a sua voz
Alguém que os escutou
deixou cair as armas e mergulhou nas mãos o rosto banhado de lágrimas
E quando foi interrogado em Tribunal de Guerra
respondeu que a voz e as palavras o faziam feliz
Lhe lembravam a infância
Campos verdes floridos
Água simples correndo
A brisa nas montanhas

Foi condenado à morte é evidente.

É preciso evitar um mal maior
Mas caminhou cantando para o muro da execução
foi necessário amordaçá-lo e mesmo assim desprendia-se dele
um misterioso halo de uma felicidade incorrupta
Impõe-se sistematizar as buscas
Não vale a pena procurá-los nos campos de futebol
no silêncio das igrejas nas boites com orquestra privativa
Não estarão nunca aí
Procurem-nos nas ruas suburbanas onde nada acontece
A identificação é fácil
Onde estiverem estará também pousado sobre a porta
um pássaro desconhecido e admirável
ou florirá na soleira a mancha vegetal de uma flor luminosa
Será então aí
Engatilhem as armas invadam a casa disparem à queima roupa
Um tiro no coração de cada um
Vê-los-ão possivelmente dissolver-se no ar
Mas estará completo o esconjuro
e podereis voltar alegremente para junto dos filhos da mulher

Mais ai de vós se sentirdes de súbito o desejo de deixar correr o pranto
Quer dizer que fostes contagiados
Que estais também perdidos para nós
É preciso nesse caso ter coragem para desfechar na fronte
o tiro indispensável
Não há outra saída
A cidade o exige

Se um homem de repente interromper as pesquisas
e perguntar quem é e o que faz ali de armas na mão
já sabeis o que tendes a fazer
Matai-o
Amigo irmão que seja,
matai-o
Mesmo que tenha comido à vossa mesa e crescido a vosso lado
matai-o
Talvez que ao enquadrá-lo na mira da espingarda
os seus olhos vos fitem com sobre-humana náusea
e deslizem depois numa tristeza líquida
até ao fim da noite
Evitai o apelo a prece derradeira
um só golpe mortal misericordioso basta
para impor o silêncio secreto e inviolável

Procurem a mulher e o homem que num bar de hotel se encontraram numa tarde de chuva
Se tanto for preciso estabeleçam barricadas
senhas, salvo-condutos ,horas de recolher,censura prévia à Imprensa tribunais de excepção
Para bem da cidade do país da cultura
é preciso encontrar o casal fugitivo
que inventou o amor com carácter de urgência

Os jornais da manhã publicam a notícia
de que os viram passar de mãos dadas sorrindo
numa rua serena debruada de acácias
Um velho sem família, a testemunha, diz
ter sentido de súbito uma estranha paz interior
uma voz desprendendo um cheiro a primavera
o doce bafo quente da adolescência longínqua
No inquérito oficial atónito afirmou
que o homem e a mulher tinham estrelas na fronte
e caminhavam envoltos numa cortina de música
com gestos naturais alheios
Crê-se que a situação vai atingir o climax
e a polícia poderá cumprir o seu dever.

Um homem uma mulher um cartaz de denúncia
A voz do locutor definitiva nítida
Manchetes cor de sangue no rosto dos jornais

É PRECISO ENCONTRÁ-LOS ANTES QUE SEJA TARDE

Já não basta o silêncio a espera conivente o medo inexplicado
a vida igual a sempre conversas de negócios
esperanças de emprego contrabando de drogas aluguer de automóveis
Já não basta ficar frente ao copo vazio no café povoado
ou marinheiro em terra a afogar a distância
no corpo sem mistério da prostituta anónima
Algures no labirinto da cidade um homem e uma mulher
amam-se espreitam a rua pelo intervalo das persianas
constroem com urgência um universo do amor.

E é preciso encontrá-los E é preciso encontrá-los

Importa perguntar em que rua se escondem
em que lugar oculto permanecem, resistem
sonham meses futuros continentes à espera
Em que sombra se apagam em que suave e cúmplice
abrigo fraternal deixam correr o tempo
de sentidos cerrados ao estrépito das armas
Que mãos desconhecidas apertam as suas
no silêncio pressago da cidade inimiga

Onde quer que desfraldem o cântico sereno
rasgam densos limites entre o dia e a noite
E é preciso ir mais longe
destruir para sempre o pecado da infância
erguer muros de prisão em círculos fechados
impor a violência a tirania o ódio
Entretanto das esquinas escorre em letras enormes
a denúncia total do homem e da mulher
que no bar em penumbra numa tarde de chuva
inventaram o amor com carácter de urgência
COMUNICADO GOVERNAMENTAL À IMPRENSA

Por diversas razões sabe-se que não deixaram a cidade
o nosso sistema policial é óptimo estão vigiadas todas as saídas
encerramos o aeroporto patrulhamos os cais
há inspectores disfarçados em todas as gares de caminhos de ferro

É na cidade que é preciso procurá-los
incansavelmente sem desfalecimentos
Uma tarefa para um milhão de habitantes
todos são necessários
todos são necessários
Não sem preocupem com os gastos a Assembleia votou um crédito especial
e o ministro das Finanças
tem já prontas as bases de um novo imposto de Salvação Pública

Depois das seis da tarde é proibido circular
Avisa-se a população de que as forças da ordem
atirarão sem prevenir sobre quem quer que seja
depois daquela hora
Esta madrugada por exemplo
uma patrulha da Guarda matou no Cais da Areia
um marinheiro grego que regressava ao seu navio

Quando chegaram junto dele acenou aos soldados
disse qualquer coisa em voz baixa e fechou os olhos e morreu
Tinha trinta anos e uma família à espera numa aldeia do Peloponeso
O cônsul tomou conhecimento da ocorrência e aceitou as desculpas
do Governo pelo engano cometido
Afinal tratava-se apenas de um marinheiro qualque
Todos compreenderam que não era caso para um protesto diplomático
e depois o homem e a mulher que a policia procura
representam um perigo para nós e para a Grécia
para todos os países do hemisfério ocidental
Valem bem o sacrifício de um marinheiro anónimo
que regressava ao seu navio depois da hora estabelecida
sujo insignificante e porventura bêbado

SEGUE-SE UM PROGRAMA DE MÚSICA DE DANÇA

Divirtam-se atordoem-se mas não esqueçam o homem e a mulher
Escondidos em qualquer parte da cidade
Repete-se é indispensável encontrá-los
Um grupo de cidadãos de relevo ofereceu uma importante recompensa
destinada a quem prestar informações que levem à captura do casal fugitivo
Apela-se para o civismo de todos os habitantes
A questão está posta .É preciso resolvê-la
para que a vida reentre na normalidade habitual
Investigamos nos arquivos
Nada consta
Era um homem como qualquer outro
com um emprego de trinta e oito horas semanais
cinema aos sábados à noite
domingos sem programa
e gosto pelos livros de ficção cientifica
Os vizinhos nunca notaram nada de especial
vinha cedo para casa
não tinha televisão,deitava-se sobre a cama logo após o jantar
e adormecia sem esforço

Não voltou ao emprego o quarto está fechado
deixou em meio as «Crónicas marcianas»
perdeu-se precipitadamente no labirinto da cidade
à saída do hotel numa tarde de chuva
O pouco que se sabe da mulher autoriza-nos a crer
que se trata de uma rapariga até aqui vulgar
Nenhum sinal característico nenhum hábito digno de nota
Gostava de gatos dizem
Mas mesmo isso não é certo
Trabalhava numa fábrica de têxteis como secretária da gerência
era bem paga e tinha semana inglesa
passava as férias na Costa da Caparica.

Ninguém lhe conhecia uma aventura
Em quatro anos de emprego só faltou uma vez
quando o pai sofreu um colapso cardíaco
Não pedia empréstimos na Caixa
Usava saia e blusa
e um impermeável vermelho no dia em que desapareceu

Esperam por ela em casa: duas cartas de amigas
o último número de uma revista de modas
a boneca espanhola que lhe deram aos sete anos
Ficou provado que não se conheciam
Encontraram-se ocasionalmente num bar de hotel numa tarde de chuva
sorriram inventaram o amor com carácter de urgência
mergulharam cantando no coração da cidade

Importa descobri-los onde quer que se escondam
antes que seja demasiado tarde
e o amor como um rio inunde as alamedas
praças, becos, calçadas, quebrando nas esquinas

Já não podem escapar
Foi tudo calculado
com rigores matemáticos
Estabeleceu-se o cerco
A policia e o exército estão a postos
Prevê-separa breve a captura do casal fugitivo
(Mas um grito de esperança inconsequente vem
do fundo da noite envolver a cidade
au bout du chagrin une fenêtre ouverte
une fenêtre eclairée)


Daniel Filipe, jornalista e poeta cabo-verdiano (1925-1964)

Do livro”A invenção do amor” (1961)



segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

À Noite...


À noite o mar chorava moribundo...
Era a tua alma que
descera ao mundo
De flor em flor a perguntar por mim
M.A.S(Agosto-1968)
Pequena homenagem ao eterno amigo

domingo, 13 de janeiro de 2008

Oferta



Sou a quitandeira mais doce
que todos os doces de côco,
minha boca é tão docinha
como a fruta da minha quinda.

Tenho os seios para dar
duas laranjas do Loje,
tenho nos olhos pitangas
tão boas de namorar

Tenho o Sol na barriga
e doçura da manga nos braços,
quem quer a minha vida
pra adoçar os seus cansaços?

António Cardoso

Angolano


Ser angolano é meu fado, é meu castigo

Branco eu sou e pois já não consigo

mudar jamais de cor ou condição...

Mas, será que tem cor o coração?


Ser africano não é questão de cor

é sentimento, vocação talvez amor.

Não é questão nem mesmo de bandeiras

de língua, de costumes ou maneiras...


A questão é de dentro, é sentimento

e nas parecenças de outras terras

longe das disputas e das guerras

encontro na distância esquecimento!


Neves e Sousa-Poeta e Pintor

sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

Rumo


É tempo companheiro!
Caminhemos...
Longe, a Terra chama por nós,
e ninguém resiste à voz
da Terra!...

Nela,
o mesmo sol ardente nos queimou
a mesma lua triste nos acariciou,
e se tu és negro,
e eu sou branca,
a mesma terra nos gerou!

Vamos companheiro!
É tempo...
Que o meu coração
se abra à mágoa das tuas mágoas
e em prazer dos teus prazeres
irmão:
que as minhas mãos brancas
se estendam
para estreitar com amor
as tuas longas mãos negras...
E o seu suor,
quando rasgamos os trilhos
de um mundo melhor.

Vamos!
que outro oceano nos inflama...
Ouves?
É a Terra que nos chama...

E é tempo companheiro!
Caminhemos...


Alda Lara, 1951