segunda-feira, 19 de novembro de 2012

SAUDADE


Foto: ANTÓNIO GEDEÃO, in 366 POEMAS QUE FALAM DE AMOR, Antologia organizada por Vasco Graça Moura, (Quetzal, 2003)


OS AMANTES LIQUEFEITOS

Para quem não tem pena que o afague
é bom saber que o jovem par de amantes
marcou encontro num jardim de Copenhaga. 
 
Na manhã fria como o aço cromado
Uma névoa leitosa amassa o esqueleto das árvores
num hálito empastado. 
 
Esquálidos, adivinham-se os ramos na bruma dissolvente,
secos e descarnados como tíbias desenterradas
ao longo das hastes, os dentes polidos do gelo pendente
como presas de cães atentas e aceradas. 
 
Gélido um vento sopra e eriça a epiderme
das estátuas de bronze diluídas no espaço,
e a pele dos golfinhos de pedra que emergem da água inerme
de um lago morto como vidro baço. 
 
Ininterruptamente
cai a neve
naquela queda paulatina e leve
que tudo cobre, pesadamente. 
 
Chegaram os amantes.
Caminham silenciosos, de mãos dadas.
Sob as luvas grosseiras e bordadas 
 
Sentem-se os dedos mais que palpitantes.
Pararam e examinam-se. Os olhos um do outro se povoam,
batem as asas, desfazem-se em vapor,
as minúcias do rosto sobrevoam
prospectanto os filões mais íntimos do amor. 
 
Fecham os olhos. Apagam-se as luzes.
Vogam no oceano os náufragos solitários.
Juntam-se as bocas no fundo dos capuzes
Como dois pólos de sinais contrários. 
 
Uma estrela cadente os ares corta
e enquanto o longo beijo continua
semeia luz em pó na natureza morta. 
 
Rompem as flores do chão, e as árvores esquálidas
projectam sobre a relva a sombra tutelar.
Anima-se o sangue nas veias de bronze das estátuas pálidas,
dissipa-se a névoa, alegra-se o ar.
Um búfalo de fogo no horizonte se esboça.
Traz música nos olhos e as goelas hiantes.
Funde-se a neve empedernida e grossa.
Funde-se o gelo. Fundem-se os amantes.

*

Fotografia e arte digital: Nude 01, de Christian Simonian

*

(CC)
 
Saudade é um pouco como fome. Só passa quando se come a presença. Mas às vezes a saudade é tão profunda que a presença é pouco: quer-se... absorver a outra pessoa toda. Essa vontade de um ser o outro para uma unificação inteira, é um dos sentimentos mais urgentes que se tem na vida.

CLARICE LISPECTOR

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